Já lhes revelei, portanto, a fonte do primeiro e supremo prazer da vida: a devassidão! Percebo que alguns de vocês se mostram incrédulos quanto essa afirmação. Talvez por pudor ou romantismo, acreditam que se entregam a concupiscência não por volúpia e justificam seus atos em busca do prazer denominando-o amor. Abusam da minha inocência se assim se justificam. Mortais, aquilo que chamam amor nada mais é do que a mais violenta forma da crueldade. Vossas relações amorosas são construídas a bases de contratos velados. Dirigem-se ao ente amado como se propusessem: “meu escravo, eu o aceito e tolero com as seguintes condições. Você renuncia sem restrições a sua personalidade. Não tem mais individualidade. É em minhas mãos um instrumento cego que executa, sem discutir, todas as minhas ordens. Se esquecer que é meu escravo e não me obedecer em tudo, sem reservas, tenho o direito de castigá-lo como quiser e não lhe cabe o direito de reclamar. Todo bem que lhe concedo é uma graça de minha parte e deve ser aceito como tal, com reconhecimento, não tendo nenhum dever ou obrigação com você. Você não tem o direito de ser nem filho, nem irmão, nem amigo, nada além de meu escravo prostrado no chão. Não só o seu corpo, mas a sua alma me pertence, e seja qual for o grau de seu sofrimento, você deve, assim mesmo, suas sensações e sentimentos as minhas ordens. A maior crueldade me é permitida, mesmo se o mutilar, suportará sem reclamar. Trabalhará para mim como um escravo, ainda que eu viva na opulência e lhe deixe faltar de tudo, ainda que o espezinhe deverá beijar o pé que o esmaga. Posso deixá-lo a qualquer momento, você não pode fugir. Você não tem nada fora de mim, sou tudo para você: sua vida, seu futuro, sua felicidade, sua infelicidade, seu martírio e sua alegria. Tudo que eu lhe pedir de bom e de mal, deverá fazer. Sua honra, seu sangue, seu espírito e suas atividades me pertencem, sou dona de sua vida e de sua morte”. Vejo que me olham com uma certa incredulidade. Acabo de vos representar exatamente como se comportam nos relacionamentos amorosos. Não me olhem com essa cara! Não sou culpada da pequenez com que conduzem suas relações, dou-lhes a alegria e o prazer, mas preferem imolar-se com os ciúmes, apropriar-se do outro como se este fosse apenas mais um bem, não vivem as paixões, insistem em torná-las um jogo de trocas de favores... e sofisticam-se cada vez mais: me julgam prepotente por desejar provar minha divindade, e vocês? Escondem que também brincam de Deus, querendo moldar o ser amado, a vossa imagem e semelhança...
TEXTO COM TRECHOS DO ELOGIO DA LOUCURA (ERASMO DE ROTERDAM) E CARTA DE WANDA AO ESPOSO SACHER-MASOCK